Sociohistórica, nº 34, 2do. Semestre de 2014. ISSN 1852-1606
Universidad Nacional de La Plata. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación.
Centro de Investigaciones Socio Históricas

RESEÑA / REVIEW

 

Pensadores que inventaron el Brasil

 

Reseña: CARDOSO, Fernando Henrique. (2013). Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras.

 

Marcelo Moraes e Silva

Universidade Federal do Paraná
Brasil
moraes_marc@yahoo.com.br

 

Cita sugerida: Moraes e Silva, M. (2014). Pensadores que inventaram o Brasil [Reseña del libro "Pensadores que inventaram o Brasil" de Cardoso, F.]. Sociohistorica, 2014 (34). Recuperado de: http://www.sociohistorica.fahce.unlp.edu.ar/article/view/SH2014n34a06

 

O que comentar de um livro como “Pensadores que inventaram o Brasil”? Um primeiro ponto que pode ser abordado sobre a obra refere-se às credenciais do autor. O livro foi escrito por um “imortal”, afinal, Fernando Henrique Cardoso (FHC) é um membro da Academia Brasileira de Letras. Além dessa credencial, o autor é considerado um dos sociólogos brasileiros e latino-americanos mais eminentes da segunda metade do século XX, que também se destacou fora dos círculos acadêmicos, sobressaindo-se, ainda, no campo político, ao ocupar o cargo máximo do Brasil, a presidência da república, durante os anos de 1994 a 2002. A obra reúne 18 ensaios e um posfácio escrito pelo também “imortal” José Murilo de Carvalho; tem como temática central uma retrospectiva das ideias do ex-presidente, escritas ao longo de 35 anos (1978-2013), sobre dez grandes intelectuais brasileiros, que, em sua opinião, são os pensadores que “inventaram” o Brasil.

Poder-se-ia começar a interpretação do livro pelo refinamento da escrita. Característica que proporciona à obra a possibilidade de ser lida por diversos ângulos... Pode ser lida com um trabalho acadêmico, no qual o autor faz algo próximo de uma história do pensamento social brasileiro... Pode ser lido como uma espécie de biografia dos “pensadores que inventaram o Brasil”, cruzada em diversos momentos com uma própria autobiografia do autor... Mais ainda pode ser lido como um livro de memórias, algo próximo a um romance cheio de recursos literários, pois se torna um caderno/ diário cheio de belas anotações, que transbordam emoções e sentimentos...

Mas, como FHC procedeu para selecionar os 10 autores que inventaram o Brasil? Pistas e vestígios para dar uma resposta a esta questão são dadas por José Murilo de Carvalho, no posfácio do livro, quando salienta que a escolha dos intelectuais, não foi aleatória e sim motivada por inúmeras questões, como preferência, amizade, admiração e reconhecimento. Trata-se de uma reconstrução identitária que FHC realiza, tendo como foco a sua experiência singular e, principalmente, os momentos e os lugares em que passou e/ou ocupou durante toda sua vida pública. O seu critério de seleção está ligado à produção de uma memória individual. Contudo, ousa-se dizer que se trata de uma tentativa de criação de uma memória coletiva do pensamento social brasileiro.

A tentativa de criação desta memória possui uma conotação muito forte, afinal o autor, a partir do fim da década de 1960, tornou-se um dos mais importantes pensadores do Brasil. É necessário salientar que tal seleção acabou por revelar o emaranhado discursivo, no qual o mesmo estava inserido, pois os pensadores foram elencados por um processo seletivo, produzindo, com isso, certos apagamentos e/ou esquecimentos, bem como a valorização de alguns em detrimentos de outros. Esses silêncios podem ser uma opção do autor em restringir seus argumentos ao essencial, como também podem ser o resultado de uma ação deliberada de ocultamento. Diante dessa dupla possibilidade, procura-se examinar as regras de escolha e seleção, assim como as regras de exclusão. Tais supressões não são produtos do acaso: trata-se de um elo de elementos temporais, espaciais e identitários. Deve-se salientar, ainda, que não há neutralidade nos registros da memória, pois as rememorações não são registros passivos e/ou aleatórios da realidade. A memória produz uma revisão das próprias lembranças, fazendo uma espécie de depuração do que pode ser compreendido como inconveniente, eliminando os fatos desejados e reforçando os preferidos.

Estes esquecimentos parecem ser uma marca do livro. José Murilo de Carvalho argumenta, no posfácio, que uma das características que salta aos olhos é a predominância paulista. Quase todos ligados ao círculo da Universidade de São Paulo (atual USP) – instituição com a qual o autor teve relação direta desde 1949. Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido e Florestan Fernandes foram seus professores e depois colegas de docência. Caio Prado Júnior também realizou seus estudos na universidade paulistana. Já Paulo Prado – que era parente de Caio Prado, membros de uma das famílias mais ricas e tradicionais de São Paulo – apesar de paulista, era um “outsider” do circuito universitário, sendo mais ligado aos círculos literários e artísticos da maior cidade do país. Os outros pensadores são evocados por outros motivos: o abolicionista Joaquim Nabuco surge pelo encantamento pela atuação intelectual e política; Euclides da Cunha pelo papel pioneiro dentro da sociologia brasileira; o economista paraibano Celso Furtado e o jurista gaúcho Raymundo Faoro aparecem pelo respeito e amizade desenvolvida ao longo dos anos; já o intelectual pernambucano Gilberto Freyre é o pensador que escapa às relações de poder estabelecidas, surgindo no horizonte por certa repulsa de Fernando Henrique Cardoso às suas ideias.

Se existe uma predominância paulista, conforme constato acima, é interessante também pensar nos apagamentos realizados pelo autor. Teóricos do porte de Afonso Arinos de Melo Franco; Alberto Torres; Milton Santos; Nelson Werneck Sodré; Oliveira Vianna; e Sílvio Romero; são esquecidos. Alguns são lembrados em algumas passagens... Outros, nem isso... José Murilo de Carvalho, ainda no posfácio, dá importantes pistas da seletividade regionalizada estabelecida, argumentando que na década de 1950 a USP, juntamente com o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), eram os dois principais centros de estudos sociológicos do Brasil. José Murilo de Carvalho indica que o ex-presidente só faz uma breve menção à referida instituição carioca. Nomes ligados ao instituto sequer são mencionados – como, por exemplo, Hélio Jaguaribe, Alberto Guerreiro Ramos e Álvaro Vieira Pinto. Contudo, as regras de exclusão não se restringem somente a uma identidade regionalizada. Outros elementos surgem no horizonte, afinal, importantes intelectuais próximos ao seu círculo são apagados, como, por exemplo, o seu também ex-professor Fernando de Azevedo.

O crítico literário Antonio Candido foi selecionado, principalmente pela admiração e amizade que FHC tinha pelo ex-professor. A menção do ex-aluno explica o esquecimento de Fernando de Azevedo que, ao lembrar-se de Antonio Candido, acaba também por se rememorar do outro professor, afirmando que este era um durkheimiano duro e enciclopédico, que não discutia em aulas temas que atraíssem os estudantes. Já Antonio Candido era seu oposto. Era o cortês, benquisto e esplêndido professor que “explicava com clareza a barafunda sociológica que nos deixava fascinados e atônitos (...). Eu que assistia às aulas junto a Ruth, pensava com meus botões: nunca serei capaz de tanta limpidez, elegância e erudição. Dava inveja e admiração” (p.152-153); “Outro igual a Antonio Candido, só terminando à la Garcia Lorca: custara muito a nascer” (p.155-156).

Outro paulista relembrado foi o seu orientador de tese Florestan Fernandes. A relação entre ambos é marcada por uma mistura de sentimentos. A admiração nutrida ao seu velho mestre é evidente. O estudante aprendeu com o mentor a ter sede pelo saber... O mestre lhe demonstrou que a sociologia era uma ciência e que o seu ofício deveria ser feito de forma rigorosa, apoiado em um conjunto de hipóteses e métodos bem definidos... O educador lhe mostrou que não importava se a aula era amena e/ou atraente, o que importava era que uma escola sociológica brasileira deveria ser formada... Mais ainda: o orientador lhe ensinou a não se deixar contaminar por discursos prontos, mostrando-lhe que um verdadeiro sociólogo não pode deixar que “(...) a paixão ideológica sufoque a argúcia cientifica” (p.191).

Ainda em se tratando dos rememorados na obra, acredita-se que Caio Prado Júnior foi relembrado por três motivos. O primeiro é o reconhecimento, afinal, o seu livro “Formação Econômica do Brasil”, juntamente com “Casa-Grande Senzala” de Gilberto Freyre e “Raízes do Brasil” de Sergio Buarque de Holanda, se tornaram por força de uma tradição inventada os três principais clássicos do pensamento social brasileiro. O segundo motivo da lembrança é pela admiração nutrida ao intelectual, mesmo com as divergências que possuíam em termos teóricos. Caio Prado praticamente inaugura a tradição marxista no Brasil, a qual Fernando Henrique Cardoso considera uma das formas mais perigosas de pensamento. O terceiro ponto da escolha do intelectual é para marcar uma posição política no campo acadêmico, as rugas não eram com Caio Prado e sim com a tradição marxista brasileira, por isso ele utiliza o intelectual para fazer uma alerta em relação ao materialismo histórico dialético, argumentando que o intelectual não ficou “(...) a cada instante batendo no peito para fazer contrição dos marxistas acadêmicos. Usa o método com singeleza de quem sabe que não basta crer, é preciso aprender” (p.147).

Em relação ao autor de “Raízes do Brasil”, surge um elemento interessante. Se o olhar for lançado diretamente ao espaço destinado ao pensador Sergio Buarque de Holanda, será possível compor apenas um pequeno ensaio de quatro páginas. Contudo, ao mergulhar nas entrelinhas do livro, descobre-se a vigorosa presença do intelectual na formação acadêmica de FHC. Esta influência é marcada por um encantamento pela modernidade buarqueniana, centrada na urbanização e industrialização, que, na visão do ex-presidente, apresenta um horizonte profícuo de alternativas. Afinal, ao retornar às raízes do Brasil, pode-se compreender o que somos, reconhecendo o peso do passado e, sobretudo, vendo possibilidades: “O desafio proposto para o futuro será exatamente o de substituir o personalismo, que fundamenta as oligarquias, pela racionalidade da vida pública, que pode fundamentar a democracia” (p.139). Estes pontos foram pilares fundamentais da trajetória intelectual e política de Fernando Henrique Cardoso.

Euclides da Cunha surge no livro pelo respeito de suas análises cientificistas. Ao emitir um retrato sociológico do Brasil, principalmente na obra “Os Sertões”, publicada em 1902, o autor surge como o primeiro “sociólogo” brasileiro da “vida cotidiana”. Segundo FHC, o maior mérito de Euclides da Cunha foi o de aguçar uma consciência crítica, demonstrando um Brasil marcado pela pobreza rural, analfabetismo, fome e doença; enfatizando que, apesar da limitação temporal da obra, seu mergulho na compreensão da vida do sertanejo foi admirável, pois sua surpreendente criatividade metodológica o faz passar de um nível de abstração para outro e deste para a discussão do concreto de forma admirável, indo “... do meio ambiente à historia cultural, dessa aos pormenores da vida cotidiana do sertanejo...” (p.68-69). Análises que em sua opinião bastam por si só para explicar a permanência desse grande livro.

Já a lembrança de Paulo Prado no livro resenhado é bem mais sucinta, podendo-se afirmar que é praticamente esquecida. Afinal, restringe-se a um pequeno texto, mostrando nas entrelinhas, que o pensador não possuía centralidade. Os pontos centrais levantados por Paulo Prado, na opinião do ex-presidente, são as reflexões sobre as debilidades da população brasileira. Contudo, acredita-se que a lembrança/esquecimento de Paulo Prado no livro se deve ao encantamento do método impressionista, mas que não sucumbe ao olhar mais racionalizador do sociólogo, que afirma que o pensador analisado pode até “(...) valer como estética, pode abrilhantar salões e saraus (...) mas não resiste ao tempo e às vezes nem ao vento” (p.76).

De forma inversa a Paulo Prado, encontram-se Celso Furtado e Raymundo Faoro, que adentraram a obra pela admiração que o ex-presidente tinha em relação aos dois intelectuais. O economista paraibano Celso Furtado, nas palavras de FHC, foi um intelectual que ensinou a geração que começou a escrever após 1960 a ter uma paixão pela economia. Era um pensador de escrita sóbria, utilizava-se de poucas palavras para dizer o essencial, era um Graciliano Ramos da economia. Já a admiração pelo autor de “Os Donos do Poder”, surge principalmente pelo entendimento que Raymondo Faoro tinha do significado do patrimonialismo na evolução sociopolítica brasileira. As maiores virtudes apresentadas por FHC, em relação ao pensador, foram sua crença democrática e sua compreensão do liberalismo como contraponto fundamental ao roldão que o culto ao Estado e o “estamento burocrático” representam historicamente na sociedade brasileira; ou seja, tais confusões entre as esferas públicas e privadas – que foram tão bem analisadas por Faoro – acabaram gerando práticas que mostram a pior faceta de nossa tradição política, que continuam presentes até os dias atuais.

Contudo, a maior admiração é em torno da figura de Joaquim Nabuco. Entusiasmo que iniciou nos finais da década de 1950 e início da década de 1960. Com Nabuco, o então jovem sociólogo aprendeu que a escravidão era a condição sociológica que explicaria, de maneira cabal, o atraso brasileiro, sendo necessário destruir a obra da escravidão. Mais ainda teve como lições nos escritos do abolicionista o encanto pela democracia e pela política, percebendo que conquistas duradouras não se davam por rupturas dramáticas e sim por exaustivas negociações ocorridas no plano político, pautadas sempre em muita reflexão, bem como análise prévia e cuidadosa dos fatos. Para o ex-presidente, Nabuco está “(...) entre os maiores pensadores e homens de ação que o Brasil já teve” (p.62). Todos estes elogios são, na verdade, respeito por um indivíduo que, assim como o ex-presidente, conciliou a vida intelectual com a política, enfrentando todos os dilemas proporcionados por esta.

O único personagem que escapa aos apagamentos realizados pelo ex-presidente foi o pernambucano Gilberto Freyre. Mesmo confessando ter tido, em sua juventude, verdadeiro horror ao autor de “Casa-Grande Senzala”, este entrou no rol dos selecionados. Mas por que tal incômodo? Entende-se que a ojeriza devia-se, principalmente, à tradição que o pernambucano representava no campo sociológico brasileiro. Visto que as obras de Gilberto Freyre eram algo muito distante da sociologia praticada nos círculos paulistas. Por estes motivos, FHC, assim como diversos intelectuais do período, acusaram Gilberto Freyre de não ter rigor científico, mostrando-se, portanto, conservador, saudosista do mundo patriarcal e criador de mitos sobre a uma suposta democracia racial no Brasil; ou seja, o pernambucano surge mais pela força da tradição de sua obra, do que pela valorização e encantamento por seus escritos.

Esses são os principais pontos contidos no livro. O que torna o texto, além de uma leitura agradável, um importante trabalho para o pensamento social brasileiro e para a história da democracia no país. Essas são as maiores contribuições da obra. Deseja-se a todos uma excelente leitura!

 

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